No deserto da pandemia
No tempo de Quaresma em que nos introduzimos na semana passada, somos convidados a fazer um deserto onde nos possamos confrontar com privações e sacrifícios, mas também com comportamentos que ajudem a testar o nosso compromisso com a fé que professamos, experimentando a nossa robustez e as nossas defesas. O “tempo de cura”, como chamou o Cónego Paulo Franco a este tempo, exige o melhor dos que o percorrem intencionalmente.
Mas, há outros desertos que podemos percorrer. Alguns que se impõem e que temos de enfrentar. Em termos sociais, atravessamos nestes dias, que passam vagarosamente, um deserto difícil e tormentoso. E não é de calor ou frio de que se fala, nem de ventos que trazem e nos cobrem de areia fina e ainda nos tolhem o olhar para lá das nuvens de pedra esfarelada. Trata-se de um inimigo invisível e perigoso que atacou, ataca e continuará a atacar em forma de pandemia todos os cantos do planeta que habitamos. Vai para um ano que muitos de nós se afastaram dos seus pares profissionais e das relações familiares e de amizade habitualmente partilhadas de perto. Criou-se um imenso deserto entre pessoas que se gostam e amam, apesar dos meios que hoje existem para se comunicarem. É que nada substitui a presença física e o calor de uma mão que cumprimenta outra, de um beijo que bafeja um rosto, de um abraço aconchegante ou de um olhar que se cruza a curta distância. Vivemos confinados por necessidade, por respeito ou por obrigação. Infelizmente, mesmo com os cuidados de milhões – da maioria –, houve relações e gestos que ficaram seriamente feridos. E criaram-se vazios antes preenchidos pela presença de entes queridos e de amigos que deixaram de morar por cá, por causa da nova doença e do relaxe de alguns poucos. Pedaços insuportáveis do deserto da pandemia que nos destroem por dentro, nos deixam órfãos, viúvos e privados do toque, dos beijos e dos abraços de familiares e amigos e dos cumprimentos frequentes de conhecidos. O pior dos desafios do deserto que podíamos atravessar, o que mais dói e que mais demora a percorrer. Muito mais do que aqueles em que a ausência é apenas provisória, que não deixa de doer, mas em que se pode acreditar que um dia chegarão os encontros desejados e os convívios de antes.
Mas, as vicissitudes do deserto não ficam por aqui. Muitos perdem as suas empresas e ainda mais os seus empregos. Muitas famílias ficam desprotegidas e perdidas em caminhos de areia, sem guia, sem referência e sem direcção. E ainda tantos que não contam com qualquer ajuda para poderem superar o maior desafio das suas vidas. São tudo problemas enormes que se colocam a qualquer sociedade e requerem solução. A realidade não é nova e o facto da conjuntura ser especialmente desfavorável assusta ainda mais. Qualquer deserto é assim. Deixa-nos apreensivos, retira-nos até o pequeno conforto e mesmo numa situação que, apesar de ser difícil, é controlável, leva-nos a caminhos com perigos imprevisíveis e a situações de provação. Na verdade, não está a ser fácil fazer o deserto da pandemia. Desde logo, porque implica sujeitar-nos a privações e sacrifícios, mas também a comportamentos que colidem brutalmente com os nossos hábitos e necessidades, incluindo as materiais, e as nossas práticas do dia-a-dia. E depois de tantos meses de confinamento não é fácil resistir e aceitar contrariedades diversas, como o encontro no café, a tertúlia frequente, o copo no bar da baixa da cidade e tantas outras tentações que ficam suspensas. Mesmo que no contexto que vivemos, haja regras e precauções antes improváveis na vida da comunidade cívica que nos introduzem num deserto coercivo. Quem faz com prazer uma mudança de atitude e comportamento que comporte distanciamento a tantos e tantas coisas relativamente ao caminho antes percorrido?
Ninguém escapa às contingências impostas pelo deserto da pandemia. Nem mesmo os políticos a quem lhes é solicitada uma acção permanente e consistente na defesa dos cidadãos e a quem têm a obrigação de servir. Sobretudo, pede-se-lhes que não sejam eles os demónios.